Por Marcio Claesen
A intolerância exclui muitas travestis e transexuais do mundo do trabalho formal. Dar-lhes outras oportunidades, além da vida nas ruas, é o objetivo de alguns projetos que têm surgido no País. Um deles é o Trans Sol, em São Paulo.
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Chilena e radicada na capital paulista há 31 anos, Mavica Morales é cisgênero e tem um filho homossexual. Com ele, passou a frequentar manifestações em prol dos direitos LGBT. Em uma delas, na Praça do Ciclista, na Avenida Paulista, Mavica parou os olhos em uma travesti que estava sentada na calçada, descalça, sem expectativas. Perguntou se estava tudo bem. "Na merda", ouviu como resposta. Um clique surgiu em sua cabeça de que algo além de ir a passeatas deveria ser feito e com foco nessa letrinha dos LGBT.
Por intermédio do Transcidadania, da Prefeitura de São Paulo - que oferece bolsas para que a população trans volte a estudar - Mavica e a amiga Priscila Nunes, também cisgênero, conseguiram alunas e criaram o Trans Sol, programa que oferece curso de corte e costura para essa população todas as quartas-feiras à tarde em um espaço no Cambuci, Zona Central.
A consolidação da ideia não foi fácil. Por dois anos, elas tentaram meios de colocar o projeto em prática, A concretização veio por meio do apoio da Rede Design Possível, associação de empreendedores, e da Ecosol-SP - Incubadora Pública de Empreendimentos Solidários, da Prefeitura.
A ideia inicial era dar aulas de crochê e bonecaria, técnicas dominadas por elas, mas, assim que o curso começou - em 2016 -, perceberam que as alunas interessavam-se mais por remendar e fazer roupas e chamaram dois professores dessa área - um designer e um de corte e costura.
Rose Mary Lourenço é uma das alunas. Recifense e expulsa de casa aos 14 anos, Rose está há 26 anos em São Paulo e diz que tinha muita vontade de aprender a costurar. Articulada e com ares refinados, ela tem Ensino Médio completo e passou a ser o braço direito de Mavica e Priscila ao fazer a ponte entre as necessidades das alunas e a direção do curso.
O curso veio em momento de grande vulnerabilidade. "Eu tinha terminado uma quimioterapia e estava muito cansada, desmotivada e uma amiga perguntou: 'Você não queria voltar a estudar?' Então, procurei o curso", contou Rose ao Guia Gay São Paulo. Foi um recomeço, na verdade, após duras sessões de tratamento de um câncer - linfoma de Hodgkin - há quase dois anos.
"Não tenho grandes ambições", explica Rose, que é cabeleireira. "Eu me vejo fazendo minhas costuras. Fazendo tudo o que nunca fiz", diz, sobre sua postura perante a vida após a remissão da doença. Rose tem vontade de fazer algo pelas trans e travestis mais "idosas", como ela chama as que passaram dos 40 anos.
A história se repete. Patrícia Bezerra de Sousa, de 39 anos, cearense, também saiu de sua terra natal muito cedo, aos 17. Com o Transcidadania, no qual está desde a primeira turma, recuperou a autoestima. Ela faz a 3ª/4ª série no Centro Integrado de Educação de Jovens e Adultos (Cieja) todas as manhãs e recebe a bolsa da Prefeitura e o bolsa-família do Governo Federal.
"É uma oportunidade que eu tive de voltar à escola, aprender a ler, a escrever", relata Patrícia. Reservada, porém solícita e amável, a aluna carrega dores do passado. Diz que guarda mágoas da família e que pretende se manter solteira para sempre. "Já vi tanta amiga minha sofrer, olho roxo, braço quebrado. Eu mesma já levei surra [de namorado]. É melhor você sair sem compromisso."
A dureza na alma dessas meninas foi uma pequena barreira no início. "No começo, era uma reação meio que na defensiva", explica Mavica. Hoje, mudou. "Isso traduz a relação de confiança. E a ideia é que um dia elas se tornem empreendedoras. Entender que juntas são mais fortes. Elas são extremamente criativas, tudo elas querem saber."
"Elas são capazes", diz Priscila. "Elas souberam dividir o trabalho. Cada uma adequa as habilidades aqui." No momento, elas terminam um pedido grande conseguido por meio da Rede Design Possível e há possibilidade de montar uma coleção para o final do ano que caiba em todas as mulheres. E estão abertas a novas encomendas.
"Eu vejo que com isso elas estão fazendo história", completa Mavica. "Futuramente elas não serão reféns da prostituição, da cafetinagem. Sem falar na dignidade. Elas deixaram de ser invisíveis."