Parada virtual de São Paulo errou ao tornar-se refém de youtubers

Bem produzida e com lista grande de apoiadores, live trocou história e reconhecimento por lacração

Publicado em 14/06/2020
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Apresentadores foram escolhidos pela coleção de likes, não pelo acúmulo de luta. Mistura de gerações fez falta

Impossibilitada de ganhar as ruas, a parada LGBT de São Paulo fez edição digital no domingo 14. A iniciativa foi importante para que o sentimento de orgulho continuasse vivo mesmo sem o gigantesco evento pela cidade. Houve música. Debates. Acertos. Erros. 

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O primeiro ponto que chamou atenção na 1ª Parada Virtual do Orgulho LGBT de São Paulo foi o grande número de empresas que ligaram diretamente suas marcas às cores do arco-íris.

Dentre elas, Bradesco, Avon, Burger King e Uber, que estão na lista das maiores do País. Saber que todas elas fazem também forte trabalho pró-diversidade nos recursos humanos e na comunicação completa a cartela do que se espera das companhias no mundo atual. 

A produção merece também adjetivos positivos. A abertura ao vivo com a cantora lésbica Ellen Oléria no terraço de prédio foi bem feita e emocionante. O estúdio, caprichado. As participações de Ricky Martin, Mel C, Pabllo Vittar, Gloria Groove, Pepita, Liniker e Daniela Mercury foram ótimas surpresas. 

Haver tido espaço também para muitos debates e informações sobre direitos conquistados nas mais de oito horas da live foi outra característica positiva. Vivências lésbicas e de mulheres bi, questões trans e negritude tiveram espaço no evento. 

Entretanto, esses fatos lembram e abrem a lista de erros que esmaeceram o arco-íris proposto. Ter apresentação e comentários ao vivo apenas de influenciadores digitais tornou o debate raso, pouco representativo e desvalorizador do trabalho de ativistas históricos. 

Já na abertura ficou evidente tal problema. Grande parte dos dez influenciadores mal somavam dois anos de participação na parada de São Paulo. Estavam lá pela coleção de likes, não pelo acúmulo de luta. 

No dia seguinte ao Brasil comemorar um ano da criminalização do ódio a LGBT, o fato virou discurso decorado por Spartakus em fundo divertidozinho. Preferiu-se isso a ouvir ativistas que estavam há anos até tirando dinheiro do próprio bolso para estar em Brasília e fazer esse direito ser real. 

A dupla Diva Depressão, que apresentou a live, tudo com patrocínio do próprio Youtube, não conseguia sair do "amei", "arrasou" e afins... Mesmo depois de, por exemplo, o prefeito da cidade de São Paulo, Bruno Covas (PSDB), aparecer e fazer discurso corajoso sobre democracia, tema da parada, eles nada disseram de relevante.

Os debates mostraram a pobreza e a falta de dar voz a quem está há muito mais tempo na estrada. Os youtubers iam bem quando decoravam textos em vídeos gravados - embora com alguns erros até de datas -, entretanto, ao vivo, escoravam-se em ideias prontas, sem contexto, sem perpectiva histórica. 

Nessa mistura tecnológica teve de tudo. Defender que Marsha P. Johnson começou a Revolta de Stonewall (sendo que a própria ativista desdiz isso em documentário sobre ela mesma), afirmar que a primeira parada LGBT foi às ruas no dia seguinte à rebelião, dizer que lésbicas eram estigmatizadas pela aids, não saber o real significado da letra Q que estava na sigla - LGBTQIA+ - que eles repetiam à exaustão durante o evento.

Como fez falta a conversa entre gerações! Possivelmente a mais velha ali, a drag queen Lorelay Fox ficava deslocada por ser única nos seus mais de 30 anos. Vivências trans e lésbicas, conversas sobre ativismo e conquistas de direitos foram entregues a jovens que não trilharam os caminhos. Nem tinham informações a respeito. 

A própria história da Associação da Parada do Orgulho LGBT de São Paulo foi sacrificada pela lacração - essencialmente vazia. Ao tratar de negritude, ninguém se lembrou da presidente da parada atualmente, Claudia Regina, uma lésbica negra. Ao falar de transexuais masculinos, ficou a certeza que Alexandre Peixe, ex-presidente da marcha e homem trans, valia bem menos que uma nova inscrição-no-canal-para-ativar-o-sininho! 

A entidade justifica tantos youtubers por atraírem audiência e falarem a linguagem dos jovens. Ok, mas não se deveria ter ido tanto ao céu. Nem tanto à terra. 

A parada não é feita só para jovens! Bom sempre ter isso em mente! E os próprios adolescentes, com certeza, iriam gostar de saber de muitos fatos pela boca de quem os viveu ou conhecer como era ser LGBT há 10, 15, 30 anos ou mais! 

Um erro grave também ocorreu ao não valorizar artistas da cena LGBT de São Paulo. Nem mesmo as aliadas. A drag queen Tchaka, que abre a parada de rua há anos, por exemplo, pelo sucesso que faz, pela idade que tem e pela competência em apresentar, tornaria a live grandiosa. Entretanto, ela apareceu só para contagem regressiva de alguns segundos. 

Nas redes sociais, várias drag queens que trabalham por horas, todas as noites, sentiram-se, com toda razão do mundo, desprestigiadas. Maryana Mercury e Valenttini foram algumas das artistas que publicaram críticas em suas redes sociais e lembraram quando não recebem sequer cachê para se apresentarem para a marcha. Fazem pelo ativismo! Cadê a recíproca?

E Silvetty Montilla, um ícone da noite paulistana, onde estava? E Salete Campari, com décadas de carreira, não só na noite, mas também no ativismo, que participa ativamente das reuniões da parada?

Para uma próxima live, a parada, claro, precisa sim ter os influenciadores digitais ali. Mas chamar youtubers é uma coisa, ser refém deles é outra! Muito outra! 


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